Vejam só. Acabo de ser espinafrado por uma pessoa que se tem em alta conta e se vê como um comunista à moda antiga, ou seja, firme como uma rocha e sem um pingo de dúvida sobre o futuro radiante que virá com a revolução socialista. Ela se ouriçou toda e ficou indignada por eu ter feito uma postagem defendendo a atitude de FHC de não ir à LASA. A metralhadora girou forte, dizendo que eu rastejo para "a corja oligárquica do PSDB, do DEM e do PMDB" e "compactuo intelectualmente com o pior que a política produziu no Brasil".
Mas a pessoa em questão me acusa do que seria, para ela, um crime ainda mais grave: deixei de ser comunista e me tornei um “liberal”, fato que, junto com o primeiro, configuraria um "lamentável ocaso para um intelectual outrora 'marxista'". Do alto de sua arrogância e de suas cegas certezas, a pessoa exige que eu faça uma "autocrítica". Certamente, ela deve ter um manual prontinho para esta genuflexão diante do altar da dogmática.
Achei graça e estou rindo até agora. Mas confesso que meio em estado de choque. Com a agressividade da pessoa, com a facilidade com que se estigmatiza e se diz bobagens só pelo prazer de marcar posição, com o conservadorismo reacionário de tanta gente que se apresenta como marxista e de esquerda, tirando do bolso um monte de coisas sem pé nem cabeça como se fossem pérolas de inteligência.
Para pessoas assim, não há remédio que cure. Elas estão imunizadas contra a razão crítica e contra o tempo histórico, que passa por elas sem afetá-las. Continuam agarradas ao passado, que lhes dá segurança ontológica e base para exibições teóricas. Vivem em outra dimensão de tempo e espaço. Há muita gente assim solta por aí. Elas são, para dizer de forma simples, dogmáticas, intransigentemente dogmáticas. Só que não sabem disso. Definem-se a si próprias como “ortodoxas”. Quero distância delas, no mínimo por precaução.
Por isso, lembrei-me de Kant -- um filósofo liberal que tanto horror causa aos marxistas enrijecidos e estreitos. Ele escreveu que o dogmatismo é "aquela atitude de conhecimento que consiste em acreditar na posse da certeza ou da verdade antes de fazer a crítica da faculdade de conhecer". Direto ao ponto, sem papas na língua.
Depois, achei uma bela passagem que colhi numa entrevista dada em 2014 por Zigmunt Bauman, que aqueles marxistas satanizam por ser "pós-moderno" e por ter deixado de ser "comunista" à moda deles. Acho que merece ser citada:
"Os dogmatismos são vários e diversificados, mas eu não saberia dizer qual é o mais perigoso. Eles têm em comum o pecado original de se taparem os ouvidos e de fecharem os olhos sobre a inalienável humanidade daqueles que vivem ao seu redor, por mais diferentes que possam ser. Todas as variedades de dogmatismos, no fim das contas, são a rejeição ou a não capacidade de comunicar e de se envolver em um diálogo: são essas duas as artes cruciais para sobreviver neste mundo marcado pela diversificação crescente e por uma diáspora que dá origem a uma crescente interdependência".
E que venha o fim de semana!