terça-feira, 22 de junho de 2010

QUEM SOU EU

Eu e meu cinema

Como acontece muitas vezes, amanheci com o amontoado de perguntas sobre mim mesmo. Sou um sujeito difícil, auto-centrado e descontente. Descontente com a vida, com o mundo e comigo mesmo. Um traço marcante é a impaciência que me persegue pelo menos desde a adolescência. Uma impaciência que me impulsiona sempre para a frente quando ainda estou aprendendo o presente. Impaciência de ouvir, de ver, de esperar. Isso pode explicar muito de minha formação intelectual, cujos traços mais modernos foram plantados num só pulo, o mergulho nos livros e filmes e músicas logo que entrei na faculdade e onde percebi minha ignorância, o desconhecimento do que era considerado básico culturalmente: os clássicos da literatura, da música, o cinema moderno. Digeri tudo aquilo com muita voracidade e até hoje não sei bem o que ficou e o que expeli sem digestão alguma. Sempre tive uma imaginação delirante, ler sempre foi um exercício de persistência pois em pouco tempo minha imaginação voava por outros caminhos, como que instigada pela leitura mas deslocando-se dela. Isso explica o que sempre me intriga: a dificuldade de saber o que é mesmo que o livro está contando, como é a história. Ficava sempre um saber impressionista, o tom do texto, a linguagem, o clima da história contada. Dificilmente a trama. No cinema a mesma coisa, a mesmíssima coisa. Engraçado que só não acontecia isso com a música: passei a gostar dos clássicos e memorizava as músicas com facilidade, tendo dificuldade para gravar letras das músicas populares...
Meu cinema, acho, nasceu dessa inquietação e dessa impaciência, características que me distanciavam de todas as propostas, de todas as tendências, gostasse eu ou não delas. Era uma impaciência com o mundo, com as pessoas, com o próprio cinema. Acho que antes de falar da imaginação eu deveria falar do desejo. É verdade que minha imaginação é delirante, irrefreável. Mas acho que ela é conduzida pelo desejo. Sempre me senti mal no mundo e acho que por isso me tornei comunista, a esperança inconsciente de chegar a um mundo perfeito, não agressivo, igualitário, onde eu pudesse me sentir bem. E do mundo imperfeito para esse paraíso minha imaginação escapava sem controle. E minha impaciência registrava que tudo era devagar demais, que esse mundo confortável não chegaria jamais se dependesse dos outros. Acho que isso me levava a ser, além de impaciente, crítico com relação a tudo, às opiniões, às ações de todos. E me fazia vibrar com gestos longínquos, chegados a mim livres de suas próprias contradições, como a luta do povo vietnamita, dos cubanos. Ali sim, a ação era transformadora, vista assim pelos noticiários que só nos traziam o aparente, os fatos, a guerra, sem o cotidiano e as dificuldades terríveis daqueles povos em sair, eles também, do marasmo do cotidiano e da subserviência.
O cinema para mim, me parece agora, funcionava um tanto como um aguilhão sofisticado, usado para insuflar o real, faze-lo andar, questionar os erros de visão, - é preciso ver bem as coisas para acertar!-, provocar, questionar erros de interpretação e erros de táticas, de formulações políticas.
É importante dizer que eu não fazia isso calcado em qualquer manual, pois embora lesse com freqüência a literatura marxista, tinha com ela a mesma dificuldade que com os romances: saber exatamente o que os textos estavam dizendo. O que eu apreendia do marxismo era então fruto das leituras, das conversas, discussões, tudo isso elevado a um nível de tensão provocado por minha imaginação, como se de tudo aquilo eu só apreendesse o essencial, a dialética que me permitia perceber que no mundo nada é eternamente como se apresenta a cada instante, que é possível mudar e que essa mudança se dá dialeticamente, o novo questionando o velho em busca de uma síntese.
Me vejo hoje, como desde jovem, questionando quixotescamente o mundo com minha câmera e com meus gestos, com meu desejo de que tudo andasse e de que as pessoas entendessem melhor o mundo para muda-lo e que errassem menos, que acertassem.
Por isso não é um cinema tradicionalmente militante, de pregação de “minhas idéias”. Eu queria que todos tivessem suas idéias e que essas idéias servissem mesmo para mudar o mundo. Queria que as pessoas agissem, que as dissimulações fossem denunciadas, aclaradas, que os erros fossem expostos e banidos. Queria que minha câmera surpreendesse o mundo com suas revelações que despertassem a consciência e a crítica.
Teria assim, meu cinema documentário, um direcionamento didático?
Não acho. Nem Grierson nem Dziga Vertov. Nem o cinema da elite, revelador e belo mas que passava ao largo das mudanças do primeiro e nem o cinema de propaganda confiante de Dziga Vertov, com toda sua criatividade. A verdade é que gosto dos dois, mas não me sinto ligado a nenhum deles. Pois meu cinema desdenha dessas formas elaboradas, a conquista do espectador pelo espetáculo das coisas, incluindo aqui o próprio homem. É também um cinema que não crê que haja um “homem novo” no mundo. A rigor, sempre achei que havia sim, o “homem errado”, contra o qual era preciso lutar.
Por isso, por essa visão, QUE SÓ AGORA ASSINALO, de um “homem errado”, é que devo ter exercitado todo o tempo a desmistificação do olhar, do belo, das opiniões pessoais e públicas, da mídia. Basta ver em meus filmes, desde o “Liberdade de Imprensa” ( a desmistificação da imprensa livre), passando pelo “Migrantes” ( a desmistificação da opinião pública e da mídia), “Buraco da Comadre” ( a desmistificação da política), “Caso Norte” e “Wilsinho Galiléia” ( a desmistificação da violência), “O Caso Matteucci”(a desmistificação da justiça), etc.
Basta ver o gosto pelo cinema errático, sem acabamento, improvisado, desesperado atrás de uma revelação capaz de provocar a consciência. Basta ver alguns títulos que parecem desdenhar do sóbrio, do digno, da soberba elitista: “Buraco da Comadre”, “O homem que virou suco”, títulos que parecem desdenhar de si mesmos.
Pode ser que seja eu o “homem errado”.

João Batista de Andrade
25/junho/2007

2 comentários:

Mariana Calil disse...

Não o vejo como um homem errado, apenas um pouco severo demais consigo próprio e com o mundo.
Afinal ,se existe o "errado", é porque existe o "certo".
E quem vai dizer o que é certo e o que é errado?

Gui Augusto disse...

Desde que vi alguns de seus filmes no 5º Festival Latino-Americano me tornei fã. Mas acho triste que no Brasil seja tão difícil adquirir obras tão geniais como estas ou outras que geralmente não entram no mainstream, sei lá por quantas questões. O acesso à maioria dos seus filmes é infelizmente difícil, e quando assisti “Migrantes”, “Buraco da Comadre” e “Wilsinho Galiléia” cheguei a conclusão que eram filmes que de alguma forma eu precisava ter no meu acervo pessoal. São extremamente necessários e atuais. Poxa, gostaria tanto de saber onde e como eu posso adquiri-los. Por favor me mande uma resposta em meu email "alvesramone@hotmail.com". Muito Obrigado!