domingo, 10 de junho de 2012

a face do mal, por Alberto Dines

As confissões do ex-delegado do Dops capixaba Cláudio Guerra, no livro Memórias de uma Guerra Suja e em sua entrevista à TV Brasil, confessando os crimes que praticou a serviço da ditadura, nos empurram forçosamente para a medonha teoria da “banalidade do mal”, enunciada pela filósofa Hannah Arendt.

Enviada a Jerusalém em 1961 para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann, estrategista e gerente do Holocausto, impressionada pela frieza do burocrata da morte, Arendt formulou uma doutrina assustadora: o demônio não veste túnica vermelha, seu rosto não ostenta rictos, seus olhos não são arregalados – o demônio é gente como a gente. O demônio cumpre ordens, por mais sinistras que sejam. O demônio é um feixe de doutrinas hediondas que seres humanos absolutamente normais aceitam sem discutir.

Eichmann declarou-se inocente, mas as evidências de que cometeu todos os 15 crimes contra a humanidade de que era acusado levaram-no à forca. Executado há exatos 40 anos, em 1.º de junho de 1962.

Cláudio Guerra não foi sequestrado e levado contra a sua vontade a um tribunal. Procurou um jornalista de Vitória (Rogério Medeiros, que já o acusara por outros crimes) e, inspirado pela fé em Deus (agora é pastor na Assembleia de Deus), resolveu contar tudo. Apenas começou.

Não sabe quantos militantes de esquerda matou – tem lembrança de mais de 20; sabe o nome dos cadáveres barbaramente torturados que recebeu do DOI-Codi do Rio, de São Paulo, da Casa da Morte em Petrópolis, e que mandou cremar em uma usina de açúcar em Campos, norte fluminense.

Tem 71 anos, baixo, meio barrigudo, fala mansa, transpira muito, sofre de gota, diabete, problemas cardíacos. Não quer ser perdoado, não teme ser liquidado como o colega e antecessor Sérgio Fleury. Quer apenas ser recebido em paz pelo Senhor. Sabe muito mais do que revelou no livro e no depoimento televisivo. Mas só prestará contas à Comissão da Verdade: já começou a falar para o Ministério Público Federal e para a Polícia Federal. Confia que os outros agentes da repressão política animem-se a segui-lo.

A “irmandade” ainda não foi desfeita, garante; a formação desta corja é a contribuição brasileira à doutrina da banalidade do mal. A organização era militar, a participação civil foi decisiva. Além de policiais como ele, empresários, funcionários públicos, médicos, magistrados, jornalistas, entidades religiosas (TFP). A família proprietária da usina-crematório foi favorecida pelo governo, ganhou facilidades e retribuiu.

Fanatizados pelo anticomunismo, certos de que a distensão tocada pela dupla Geisel-Golbery levaria os subversivos ao poder, constituíram o que ficou conhecido como linha dura. Linha vale-tudo. Matar ou morrer.

Repete que nunca torturou. Acha a tortura abominável; quem torturava eram os militares. Admite, porém, que os encarregados de dar sumiço aos corpos estropiados eram os civis. Ele. Este convênio banal, pragmático, assustou Hannah Arendt. Deveria assustar-nos hoje, quatro décadas depois.

Às vezes passava mal depois de uma execução; em uma ocasião, um coronel levou-o ao Hospital da Aeronáutica no Rio porque estava com palpitações, dor no peito, parecia enfarte. Não tremia ao apertar o gatilho, só depois. Um psiquiatra, um psicanalista ou mesmo um sacerdote no confessionário teriam evitado muitas mortes – ele foi em frente. Normal.

Compensava: Eichmann iniciou-se como cabo, em 1934. Deu certo: oito anos depois, em 1942, assumiu a logística de um dos projetos mais importantes para o alto comando nazista, a Solução Final. Cláudio Guerra era oficial de Justiça no interior de Minas, cuidava de cumprir sentenças de reintegração de posse, tentaram matá-lo, a PM capixaba deu-lhe guarita, treinou-o, fez dele um atirador de elite.

Não é um episódio singular, acidente, obra do acaso. Cláudio Guerra é um caso corriqueiro de intoxicação psíquica. Trivial.


Alberto Dines é jornalista.

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