Por Alex Solnik, para o 247 - Premiado no Brasil e no exterior por filmes como "Gamal", "O homem que virou suco", "A próxima vítima", "Doramundo", "O país dos tenentes", "O cego que gritava luz" e comunista de carteirinha desde 1960, o cineasta João Batista de Andrade ficou 12 anos sem filmar depois do Plano Collor.
Ele conta, nessa entrevista exclusiva ao 247 concedida em seu gabinete de presidente do Memorial da América Latina de São Paulo, que o atual racha entre o PT e o PSDB é consequência de outro, de 1966, entre Prestes e Marighela. Entre a luta democrática e a luta armada. O racha de Campinas, no qual ele esteve sem saber que estava. A turma da luta armada, diz ele, que não era a dele, engrossou as fileiras do PT.
Diz também que o PMDB é um partido "gigantão" que quer se manter no poder nacional para se proteger da Lava Jato. "Então, qual é a defesa deles? Tomar o Congresso"!
Ele conta que na volta do auto exílio não conseguiu aprovar na Ancine projeto de uma ficção sobre Vlado, com quem trabalhou, nem uma adaptação de "Vila dos Confins", de Mário Palmério, apesar dos currículos irrepreensíveis, tanto o seu quanto o do escritor. E se queixa de que seu "O cego que gritava luz" rodou o mundo fazendo parte de um pacote de filmes da "retomada", mas seu nome não estava nos textos.
Você acha que o impeachment ainda faz algum sentido?
Eu nunca fui a favor do impeachment. Eu acho que o PT e a Dilma cometeram erros e abusos na campanha. Por exemplo: acusar o Aécio de uma coisa que o Aécio nunca disse que ia fazer e, depois, quando chega ao governo, fazer. É uma coisa que ofende e que eu acho que criou um problema político. Criou uma certa intolerância da oposição em relação a ela. Agora, eu acho que a oposição tinha que se preparar para enfrentar o governo, para ser uma boa oposição ao governo, fosse para onde fosse. Ou para ela continuar o mandato dela ou ter pela frente um problema na Justiça.
Em vez disso a oposição passou o ano inteiro só falando de impeachment o que ajudou a piorar a recessão. Ou não?
Piora mais a recessão e não é bom para a oposição.
E com o novo rito o impeachment não passa mesmo, não tem como, não acha?
Não tem.
Então para que continuar? Não seria melhor o Cunha retirá-lo? Engavetar?
Claro.
O que você achou de Carlos Sampaio pedir a extinção do PT. Não foi um absurdo?
Claro. É transformar questões da Justiça em questões políticas. Uma eventual cassação do mandato da Dilma pela Justiça é problema da Justiça... o PT que se vire... A oposição deixou de fazer política. A crise política não atingiu só um partido. Atingiu o sistema todo.
Fiquei abismado de ver deputados do PSDB cerrando fileiras com Bolsonaro... eu jamais quero estar ao lado de Bolsonaro... se ele estiver de um lado eu estarei do outro...
Eu escrevi muito isso no facebook. Alertei para um risco grande de o partido virar à direita.
Se o candidato a prefeito for Dória Jr. aí a guinada à direita será completa! O único candidato de esquerda em São Paulo será o Haddad mesmo.
Eu não tenho muita coisa a favor do Haddad, mas também não tenho muita coisa contra...
A ascensão de Eduardo Cunha é uma vitória da direita fascista?
Aquilo ali... quantas vezes um oportunista chega à presidência da Câmara?! O baixo clero...
Eu nunca tinha visto alguém parecido...
Ele é demoníaco! Ele é bom, hein! No que ele faz... A gente não gosta dele, mas eu tiro o chapéu. Porque é esperto para caramba, é muito esperto, e ele trabalha, como outros trabalharam também, com o baixo clero, porque as lideranças é que falam, é que têm acesso... e o baixo clero fica excluído...é uma base amorfa... então tem acontecido fenômenos... tais como Severino Cavalcante...A diferença é que ele não era tão esperto, tão sagaz quanto o Cunha. Ele foi eleito por essa nova base, que é o segundo escalão.
E o personagem que ele faz, sempre impassível por mais factíveis que sejam as acusações contra ele?
Olha, toda a política brasileira está assim. O governo está assim. Eu não gosto de criticar Lula, minha vida não é essa, mas a toda hora ele diz eu não sei de nada... ninguém sabe de nada... o quadro de cinismo dentro da política... eu acho que não escapa ninguém. Nem centro, nem direita, nem esquerda, nada. E esse cara é o mestre do cinismo.
E o Temer? É um aprendiz dele?
O Temer é um acadêmico cheio de regras, tal. Não tem poder político. O poder político dele é o cargo. O PMDB é o gigantão da política, que aceitava se vender por cargos. Chegou uma hora que isso não satisfazia mais. E, por outro lado, que é um lado terrível também, muitos deles comprometidos na Lava Jato. Então, qual é a defesa deles? Tomar o Congresso! E se proteger. Foi o que aconteceu. Primeiro, porque o PT em frangalhos. O governo em frangalhos, não tinha mais nada a oferecer, sem futuro, porque era essa a visão, que estava tudo afundando, esse grupo trata de se defender.
Você acha que esse grupo quer o impeachment para no futuro governo tentar influir nos rumos da Lava Jato?
Não sei. Eu acho que tem limite isso. Eu acho que esse grupo todo quer se manter como poder nacional para se proteger. E para garantir os espaços que eles têm. Para isso houve um momento em que eles precisaram agir pesado e eles agiram pesado. E acho que encontraram um líder para isso. Um cara de pau...
Cunha... o líder do impeachment?
Um cara superinteligente, super sagaz, domina aquele Congresso, domina as regras do Congresso e com um problema, problema grave: ele não pode sair do poder, tem que manter para tentar segurar as acusações contra ele. Preocupação com a nação, com o futuro é zero. O que parece é que o conjunto da política brasileira está esperando esgotar isso aí no prazo. Porque no dia a dia não consegue nem mudar a composição da Câmara e nem consegue, do outro lado, fazer o governo funcionar. Então, parece que está todo mundo esperando chegar o prazo. Chegar a 2018.
Você é um comunista que virou cineasta ou um cineasta que virou comunista?
Quando eu entrei na Politécnica em 1960 eu já era dirigente do partido... falava em nome do partido...
Comunista de carteirinha?
Não existia carteirinha.
Claro...
Eu já estava envolvido com política, com literatura e com cinema. No final de 1962 nós quatro fundamos um grupo de cinema: eu, o Ramalho, o Clovis Bueno e um outro companheiro, o Batatais, o único que virou engenheiro. Em 1963 nós tínhamos uma revista de cinema, um caderno de cinema onde escrevia Jean-Claude Bernardet, Capovilla e era uma revista pioneira, os "Cadernos da Poli", bem feita. Eu fazia cineclube, pegava filmes e levava na Filosofia, eu que exibia, na FAU, na Medicina, ou alugava ou pegava nas embaixadas, pegava o projetor, pegava um ônibus e ia lá, mas era paixão pelos filmes... porque eu exibia "O Bandido Juliano"... Visconti... Eisenstein...Eu conheci o Jean-Claude Bernardet por causa dessa atividade...conheci o Rudá de Andrade por causa da atividade no cinema. Fiquei muito amigo do Rudá e o Rudá também era ligado ao partido.
Formalmente?
Não existia ligação formal...
Mas como é que funcionava um partido clandestino?
Eu tinha uma ligação formal não registrada, desde final de 62, porque eu era dirigente. Juventude Comunista e tal. Eu fui para a União Estadual de Estudantes em 63 na gestão do José Serra. O Serra era presidente e eu era um dos diretores. Eu estava ali pelo Partido. Falava em nome do Partido.
Você conheceu o Prestes?
Eu tive mais ligação, por incrível que pareça, com Marighela, porque em 63 eu coordenei o Festival da Juventude que seria na Tchecoslováquia. E eu era o coordenador brasileiro. No grupo estava o Caio Graco, eu, Fernando Peixoto. Quem dava assistência pelo Partido era o Marighela. Eu tinha encontros com Marighela...
Ele era um gênio realmente? Digo isso por causa da prova de química que ele respondeu em versos e que ficou famosa na Bahia.
Não... Marighela era um cara calado...o que eu conheci dele, eu nunca esqueço... um cara atarracado, sem pescoço, pescoço afundado, assim e tal e muito forte...
Baixo ou alto?
Lembrança minha... baixo... mas ele é que dava assistência na organização do Festival da Juventude que era um programa do partido...
Nessa altura ele não estava é claro na luta armada ainda...
Não! Isso antes de 64! Eu tenho um episódio fantástico com o Marighela depois. Em 66 houve um congresso do Partido aqui em Campinas. Eu fui ao congresso, entrei no carro de olhos vendados. Chegamos lá e ficamos numa casa. Num sítio, à beira de um lago e tal. Não sei onde é até hoje. Bom, passou um dia e não acontecia nada. Segundo dia não aconteceu nada. No segundo dia respondemos a umas questões por escrito, mas sem reunião. Entre as proposições que estavam lá uma era o caminho armado ou luta democrática. Eu era a favor da luta democrática. Não aconteceu nada, não nos reunimos, só teve aquilo. Passam-se anos... há uns dez anos, 40 anos depois, portanto, eu leio que naquele congresso estavam o Prestes e o Marighela quebrando o pau. E nós não sabíamos de nada! Eu estava lá no dia que houve o racha! Eles racharam, o Partido rachou e eu não vi Prestes, nem Marighela. Nem sabia que eles estavam lá. Ninguém sabia. Por isso nós ficamos numa casa isolada enquanto o grande tema estava sendo discutido numa outra casa do sitio. Eu estava lá no momento histórico, sem saber.
Você era um cara procurado pela repressão, então.
Eu não era perigoso... em 64 eu estava no 5º. ano de Engenharia...não era brincadeira... e aí eu falava em nome do Partido nas assembleias da universidade...Eu me lembro de uma num salão improvisado, com tábuas no chão... uma reunião sobre o golpe, é claro... e de repente anunciam lá na frente... salão lotado... "agora vai falar o João Batista de Andrade em nome do Partido Comunista Brasileiro". Isso foi logo depois do golpe. Eu estava lá atrás, fui andando até o palco, e aquela tábua no chão ecoava... era uma cena... e eu fui lá... tínhamos pouquíssimas informações, a gente estava perdido...eu não conseguia contato com ninguém...Resultado: voltei para a Casa do Estudante, onde eu morava, no sétimo andar, o dos comunistas. Eu chego lá, me dizem "porra, esteve um cara aqui te procurando... do CCC..." Eles já estavam com minha malinha pronta e me disseram para ir embora...Peguei uns livros, "Os demônios" do Dostoievsky, o Stendhal "Vermelho e Negro", que eu não abro mão dele...e fui para a rua. Eu tenho um livro chamado "Perdido no meio da rua" que eu escrevi durante o golpe, ficção, com alguns personagens. Eu fui para a rua, não sabia o que fazer. Um amigo de infância me viu na rua, era o filho do cara mais rico da minha terra. E era meu amigo de sangue! Amigo e irmão. Ele me viu e me chamou pelo apelido... Bacurau!
É um peixe?
É um pássaro. Aquele som... você imagina o que era aquele som para mim...eu desesperado na rua, sem saber para onde ir, sem família... escutar um som desses...eu entrei no carro dele, e ele me deixou num apartamentozinho na Boca do Lixo, ele era rico, mas era uma pessoa maravilhosa, era amigo e ele me pôs lá nesse apartamento que ele tinha de viração e eu fiquei lá uns seis meses, até rearticular. O Rudá de Andrade me convidou para ser programador da Cinemateca. Eu já era um pré-escritor e um pré-cineasta. Aí eu decidi. Bom, literatura não me dá uma carreira...você não ganha a vida com literatura...o cinema pode me dar essa carreira. Mergulhei fundo no cinema. Virei cineasta por opção prática, na verdade. Eu era impetuoso... filmei pra caramba...não dava tempo para a literatura, eu só voltei para a literatura recentemente...
Você filmou mais durante a ditadura do que depois, não é?
Muito mais! Quem acabou com minha carreira foi o Collor! Em 1990 eu tinha um projeto sobre Vladimir Herzog, co-produção com a tevê da Espanha. Contrato assinado. O Klaus Maria Brandauer seria o ator. Ele tinha gostado do roteiro, estava esperando o segundo tratamento. Aí tudo parou porque o Collor bloqueou o dinheiro, uma parte que vinha da Embrafilme. Nós ficamos completamente a pé. Tivemos que cancelar o projeto e cancelar os contratos de distribuição. Tinha uma pré-compra do Chanel Four. Foi um escândalo! Eu me auto exilei. No golpe fiquei escondido num apartamento em São Paulo, mas no Plano Collor eu me auto exilei, fui embora de São Paulo, fui para o interior de Goiás. Abandonei tudo. Peguei uns livros, peguei um dinheiro de um sítio que vendi e fui embora. Isso durou 12 anos. Depois que eu voltei, retomei o projeto. Entrei em vários editais com o projeto. Não ganhei nenhum. Eu, um cineasta conhecido, com carreira super festejada, muitos prêmios, era saudado, o pessoal na Europa me conhecia...perco um projeto desse que teria um significado enorme para o cinema brasileiro!
Ficção ou documentário?
Ficção! Tem a carta do Klaus Maria Brandauer para mim, o papel seria dele.
Tinha roteiro pronto?
Tudo pronto. Captando recursos...Na minha biografia da coleção "Aplauso" tem lá a carta do Klaus Maria Brandauer...depois do "Mephisto"... Depois de doze anos voltei para retomar minha carreira em São Paulo, entrei com um projeto desses e não ganhei! Aí eu desisti e quando, em 2005 nós queríamos marcar os 30 anos da morte do Vlado, reunimos os amigos, Sergio da Oboré, Markun, Weiss, Clarice. E discutimos o que fazer nos 30 anos. Eu disse na reunião, a minha parte vai ser a seguinte eu não consegui fazer o filme de forma ficcional então eu vou fazer de uma forma que sei bem fazer - um documentário. Fiz o filme com uma mini DV, com 100 mil reais de orçamento. Se eu tentasse pegar dinheiro da Ancine eu não conseguiria. E o filme marcou os 30 anos do Vlado! Marcou na Globo, na Cultura, em tudo quanto é TV. E posso dizer que foi um sucesso. Então é assim: não tem dinheiro da Ancine, eu faço sem dinheiro da Ancine.
"O Homem que virou suco" foi um grande sucesso, virou nome até de lanchonete. Foi teu filme mais popular?
E continua! Quantos títulos de jornal do tipo "José Sarney virou suco"..."o Mercadante virou suco"... charge dele virando suco... na época em que ele falou que não ia sair, que era irrevogável...a charge da "Folha" do dia seguinte era "o homem que virou suco". Isso continua até hoje. E o filme não para de exibir! Tem um livro que foi escrito agora que é uma análise da condição de trabalho nas grandes cidades feita pelo cinema. O livro deve ter 250 páginas. Tem 70 páginas falando do homem que virou suco. Ganhei o Festival de Moscou, que competia com Cannes. E na época era universal. Competia todo mundo. Japão, Estados Unidos, França. Todo mundo. E o filme ganhou por unanimidade. E é o único filme latino-americano que ganhou. "Doramundo" ganhou prêmio... "O País dos tenentes"... "Liberdade de imprensa" é considerado um marco. "Wilsinho Galiléia" quando foi exibido 21 anos depois da proibição na TV foi aclamado como um dos melhores documentários do cinema brasileiro. Eu não tenho uma carreira medíocre, não. Mas eu não levo isso de uma forma pessoal.
Você deveria ser convidado para filmar... por favor, faça um filme.
Eu entrei num edital há uns anos com "Vila dos Confins". Custei a pegar os direitos e eu tinha uma leitura muito atual daquilo. E eu sou do Triângulo Mineiro. Bom, com o meu nome, com o meu currículo, com o nome do Mário Palmério e tudo eu não ganhei! Em 1995 eu fiz "O cego que gritava luz" que era uma metáfora sobre a minha situação. A história de um velho que tinha uma história que ele tentava esconder. Até que alguém descobre que a verdade é que ele teve uma derrota política enorme. Ele dirigia um movimento por terra em Brasília e fazia acordo ora com um grande empresário, ora com outro e isso acaba resultando no assassinato de duas garotas. Era essa a minha situação e também do cinema brasileiro. O filme passou em 1995 no festival de Brasília. O que aconteceu? Meu filme circulou pelo mundo como "retomada" do cinema brasileiro... era um pacote de filmes da "retomada". Chegou a ser convidado para o Festival de Palm Springs. Foi super bem. Você lê os textos... eu não existo nos textos! O próprio Zanin, uma pessoa de quem eu gosto escreveu um livro sobre a retomada onde eu não sou nem citado! Justamente eu, que era um veterano, que tinha visto a carreira ser derrubada violentamente por causa do filme do Vlado que eu perdi em 1990. Fui atingido profundamente pelo Plano Collor. No auge da minha carreira! Depois de "Doramundo", "Céu aberto", "O país dos tenentes". Então, eu consegui voltar em 95, mas a crítica só se interessava por aquela garotada... o resto não existia. Só a Lúcia Nagib fez um livro sobre a retomada ouvindo todo mundo, inclusive eu. E não um tratado sobre o "sangue novo" e ignorando a existência anterior no cinema.
Como é que na ditadura você arrumava grana para filmar?
E tudo que eu filmei na ditadura era contra a ditadura! "Liberdade de imprensa" é um filme que eu fiz sozinho. Tinha acabado o grupo e em 67 fiz meu primeiro filme, sozinho.
"Gamal" foi depois?
"Gamal" foi depois. Depois do "Gamal" eu virei professor da ECA. Era uma época em que eu estava muito doido. Eu me liguei ao Oficina...
Tomou ácido com eles?
Não. Nada. Eu dizia olha, eu não uso droga, não vou usar droga. Eu não queria saber.
Zé Celso deve ter sido o maior consumidor de LSD do planeta...
Me inclua fora dessa discussão...eu não sei...um dos dramas da minha vida...tem uma pré-história... na verdade eu fui um adolescente muito complicado, cheio de crises, crises terríveis...quando entrei para a universidade eu descobri uma outra família...eu entrei para o Partido... para um grupo de cinema...um grupo literário... eu conhecia dirigentes sindicais...Almino Afonso... eu era garoto e já conhecia esse pessoal todo...representei os estudantes num grupo chamado Comissão de Mobilização Popular, que era o Brizola... o Almino...e eu lá, um moleque. E discutia com eles. Era a grande família para mim naquele momento... perspectivas de mudança... O golpe de 64 acabou com essa família e eu voltei a ficar sozinho. Fiz "Liberdade de imprensa", ainda no ímpeto de rebeldia contra o golpe de estado que me atingiu demais, então o filme é muito porrada, mas depois entrei numa crise lascada... porque veio o AI-5 e aí eu afundei. E qual era o grande drama para mim? Talvez da minha geração? Muitos amigos meus foram para a luta armada, e eu era contra a luta armada; outros foram para a droga, e eu era contra a droga. Então foi um momento em que eu vi meus amigos sumindo. Se destruindo. E eu no meio, quase isolado. Uma pessoa que tinha a posição como a minha estava isolado no nosso meio...Uns envolvidos com droga, que era meio o personagem do Gamal, que quer fugir e outros para a luta armada. Então foi uma época terrível.
Te chamaram para a luta armada?
Chamaram. Eu titubeei. Eu era contra, mas chegou uma hora que eu quase fui...
Chegou a treinar?
Não... não...eu não precisava treinar... eu sou do interior... acostumado a caçar... sei atirar bem... cacei muito nhambu, perdiz... sou pescador...eu pescava demais com meu pai... eu conheço planta, frutas, mato...
Você tinha perfil de guerrilheiro...
Só que a minha cabeça não...
E por que você não topava? Qual era teu argumento?
Eu não acreditava. Primeiro, eu achava que a gente tinha saído do golpe muito desmoralizado. O golpe de estado se deu sem resistência, sem nada, espantando até os militares.
Aquilo foi horrível, né?
Horrível.
O Jango fugiu do palácio. Foi enaltecido, mas para mim ele foi um covarde.
Eu acho que ele foi impotente. Ele contava com aquele apoio militar dele e foi entregando os anéis. Então, aquilo...
Aquilo foi deprimente.
Deprimente! Eu me lembro... olha, o que é a imagem... eu vi numa televisão na Casa do Estudante... durante o golpe ainda, naquele momento, vai ter golpe, não vai ter golpe e tal, o Adhemar de Barros com o Amaury Kruel... eles tinham acabado de aderir ao golpe. Então, Adhemar de Barros, perante as câmeras, eu não sei nem que TV que era...
Devia ser a Tupi...
E o Adhemar bêbado falando assim: "Jango... vai embora, Jango! Vai embora! Pega sua mulher, vai embora! Pega a Maria Teresa, vai cuidar dela, vai embora. Você perdeu, vai embora"! E bêbado, com o Amaury Kruel ao lado, essa cena não vai sair da minha cabeça nunca. Um terror. É isso: deprimente. Então, quando eu não tinha para onde ir, eu fui para a rua com essa sensação, essa coisa deprimente... impotência...eu chorava... garoto... eu chorava porque eu via as pessoas andando normalmente na rua... os carros passando...e as musiquinhas, as marchas militares nas praças. E outra coisa que eu não vou esquecer: os caminhões do Exército verdinhos, novinhos...imaginei que alguém tinha dado aqueles caminhões... percorrendo as ruas... era um ambiente deprimente. Está no meu livro "Perdido no meio da rua". Saiu pela Global. E não teve sucesso. Foi tremendamente mal publicado e mal lançado. E aí a gente brigou. Resultado: rachamos. Eles me deram uma porção lá e destruíram o resto, quer dizer, não aconteceu nada, apesar de ser um livro escrito por mim durante o golpe que se passa durante o golpe e logo depois.
Acho que nem houve golpe. Jango abandonou o palácio. Assim como Jânio. Não deixou nem um discurso. Jânio ao menos deixou um bilhete... Getúlio se matou...
E a morte dele teve um resultado positivo. Impediu o aprofundamento do golpe. Juscelino se elegeu por isso.
Não sei porque enaltecem tanto o Jango, como se ele fosse um líder popular. Nunca foi. Foi para você?
Ele não tinha força. Era cria do Getúlio, mas não tinha força.
Foi o Dunga da política.
E ele foi abrindo espaço na esquerda, no sindicalismo e tal, essa coisa toda... Eu não desgostava tanto do Jango... eu só achava fraco demais. E ele não foi capaz de criar uma estrutura de manutenção do poder. Sabendo que estava sendo caçado desde há muito tempo. E não foi só ele. Os militares tentaram o golpe com Getúlio, depois com Juscelino várias vezes, depois tentaram o golpe em 61, com a renúncia do Jânio e é claro que com Jango o pessoal da direita udenista... porque eu não sou contra a existência da direita, ela vai sempre existir e é importante que tenha cara para a gente ver... só que com a direita udenista não dava para dialogar porque ela só pensava no golpe. A obsessão deles era golpe até 64. E com uma visão perversa que é a seguinte: de achar que os militares podiam fazer o serviço sujo para eles... gente boa... inclusive jornalistas... grupos editoriais... apoiaram o golpe para o golpe cassar o Brizola, o Jango, cassar os que eles consideravam inimigos e depois voltar ao poder. Eles fizeram uma coisa terrível: apoiaram um golpe militar para que os militares fizessem o serviço sujo por eles. Porque eles não ganhariam as eleições.
Delfim me contou que ele seria o governador de São Paulo, mas o Geisel não deixou com medo de que ele depois fosse presidente e desse fim ao regime militar. O plano, então, dos udenistas e da elite era voltar ao poder com Delfim em 1979.
Eu não sabia disso, não.
Eu estive com ele anteontem. Ele tem 88 anos, nunca vi alguém dessa idade com a disposição dele. Ele seria o governador quando o escolhido foi Paulo Egydio Martins...
Eu acho que o Partido... olha, eu fui militante do Partido... tem todos os defeitos de qualquer partido de esquerda... mas o partido tem uma coisa boa... porque tem uma história, polêmica, mas é profundamente enraizada, não é uma coisa que sai do nada e é um partido que tenta ser nacional. Ao contrário da visão internacional.
O Partido acabou ou ainda existe?
Acabou. Ele legalmente se transformou em PPS.
Mas tem um PCB que aparece no horário político...
Aí é uma frente... eles retomaram a sigla e criaram um partido novo que não tem nada a ver com o anterior, porque o PCB no congresso se transformou em PPS...o PPS é que tem a herança do PCB. O problema todo... eu falei para você desse congresso em 66 onde eu estava sem saber que o racha estava acontecendo ali...talvez um dos maiores problemas da política brasileira esteja lá naquela divisão de 66, entre o Prestes e o Marighela. Luta armada contra luta democrática. O problema é que a esquerda tem no DNA dela um lado autoritário. Quem é de esquerda, sensível, honesto, sabe disso. Sabe que tem que ter muito cuidado com esse viés autoritário que está na origem da ideia do socialismo. Que é: você tem que tomar o poder para implantar...é como pôr todo mundo numa penitenciária e dizer: agora o uniforme é esse. Por melhor que sejam as ideias elas são impositivas, tal. Então, o que aconteceu em 66, no fundo, eu acho que era a coisa boa do PCB, que é essa de fazer política, de estar inserido na sociedade, basta ver a história, todos os intelectuais brasileiros passaram pelo PCB... todo mundo, até Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Jorge Amado... e a resolução 958 do Armênio Guedes que falava da questão nacional e da questão democrática foi muito importante Afirmava que além de socialismo, União Soviética, tudo isso, havia uma questão nacional. Então, o Partido ia se debruçar sobre essa questão nacional... como ser comunista no Brasil...e não na União Soviética, e não no mundo. E essa ligação forte com os intelectuais também dava uma aura ao PCB de ser generoso, de pensar bem em relação ao país. Então, era um ladinho pequeno que escapava desse lado autoritário do DNA da esquerda. E acontece que o racha continua. O lado que foi para a luta armada carregou esse DNA, esse lado autoritário. Quando a gente devia lutar para superar isso. E por isso se desenvolveu na esquerda uma corrente que passou a ser crítica à União Soviética, crítica ao socialismo real, se aproximou mais de Gramsci e das ideias do Partido Comunista Italiano e tal e começou a sair da ideia de que para chegar ao socialismo você tem que tomar o poder. O que eu acho que acabou acontecendo no Brasil. De qualquer maneira, há uma corrente de esquerda ligada ao PT que toma o governo como se tivesse tomado o estado.
Lula tem esse DNA da esquerda?
Não ele, mas o PT. A primeira entrevista de tevê do Lula foi feita para mim. Quando nós estávamos na "Hora da Notícia". Agora, olha que história, hein! No começo do "Hora da Notícia", quando nós criamos o "Hora da Notícia" eu fazia os especiais. O Vlado era o editor e o Fernando Pacheco Jordão o diretor. O Fernando Morais era chefe de reportagem. Eu resolvi fazer uma série sobre o sindicato dos metalúrgicos do ABC. Porque o arrocho era a base da sustentação política da ditadura e lá no sindicato estavam fazendo uma campanha contra o arrocho na região. E tinham apoio do sindicalismo americano. Porque os sindicatos americanos temiam que, com os baixos salários no Brasil as empresas transferissem a produção para cá. Então eu fui lá e fiz três... imagina, isso em 72... época brava... fiz três reportagens sobre o sindicato dos metalúrgicos com o Paulo Vidal. A terceira, eu fui lá filmar e o Paulo Vidal não estava, adivinha quem é que eu entrevistei? Tinha um diretor lá, o Luiz Ignácio... e eu entrevistei o Luiz Ignácio... foi a primeira entrevista dele... ele era diretor lá... ele me deu o depoimento que eu usei na terceira reportagem sobre o sindicato dos metalúrgicos... está nos arquivos da TV Cultura... a TV Cultura tinha que usar isso... porque mostra que a luta em São Bernardo começava antes, não é da era Lula...começou com Paulo Vidal e com essa relação com os sindicatos americanos. Então, é claro que era uma luta mais à direita, apesar de que naquele momento afetava a ditadura, porque atacava o arrocho.
A Dilma tem esse DNA autoritário?
A Dilma vem lá do Brizola...
Vem da luta armada...
Mais Genoíno, Dirceu... todo o grupo dirigente do PT estava ligado a essa ideia da luta armada...a luta armada, na verdade, nem chegou a existir...houve preparação... mas dizer que houve luta armada...
O que houve foi assalto a banco e não confronto com o exército para tomar o Palácio do Planalto você quer dizer?
Arrecadação de dinheiro para preparar a luta armada... acabou aí. Eu ganhei com o "Gamal" o prêmio de diretor revelação da Air France e fui à França com esse prêmio. Encontrei amigos meus exilados na França. Todos eles, naquela altura, 1971, estavam todos auto-críticos. Eles falavam em voltar. Tiravam um pouco de sarro do Partidão "vamos voltar lá, vamos entrar no MDB, fazer política, abertura democrática". Muitos deles foram para o MDB, se candidataram, militaram. Depois da anistia quando começa a crescer outra corrente, surge o Lula, a ideia de formar o PT, esse pessoal praticamente todo foi para lá. Então, a passagem pela luta democrática foi pequena. Porque depois foram para a organização que estava se criando em torno da popularidade do Lula que gerou o PT. Então, a visão que eu tenho é que eles levaram depois para as campanhas e para o governo do PT uma concepção muito autoritária. Isto é, a esquerda que acha que tem que ganhar o país tomando o estado. Ganha a eleição e em vez de ganhar só o governo, ganha o estado. Por isso não para de aparecer problema. Em qualquer lugar que você mexer aparece um problema. E é dinheiro para manter aquilo e para empregar as pessoas. Então, na verdade, eu acho que é fruto de uma concepção que eu aprendi a ser contra. Fiquei crítico do socialismo real, me aproximei mais da democracia como forma universal, que dominou as discussões naquela época...
Você acha que o governo Lula já tinha esse viés ou o governo Dilma?
Já era, porque todo esse governo teve essa coisa stalinista de correia de transmissão. O Lula levou para o governo todos os líderes sindicais. Levou a UNE, levou a CUT, todo mundo para dentro do governo. Então, na verdade, o governo criou o que na época stalinista se chamava "correia de transmissão", isto é, os movimentos sociais estão todos dentro do governo. Então, o que acontece? Quantos líderes já falaram que perderam o contato com as bases? Muitos deles já falaram isso, até o Jaques Wagner quando estava na Bahia ainda. Por que? Porque eles colocaram todos os movimentos sociais dentro do governo. E é a política que o Stalin fazia para poder controlar os movimentos sociais. O Stalin fazia assim. Aqui, eventualmente, o PT fazia por concepção de não separar a sociedade do governo, sociedade do estado e virar tudo uma coisa só. O partido político ganha a eleição, mas parece que o movimento social é que ganhou.
Tem possibilidade de o PT e o PSDB se entenderem ou já era?
Eu acho que não tem possibilidade nenhuma, não. Eu acho que é muita cicatriz e tal, eu acho que é muito difícil. Eu acho mais fácil... aliás, esses partidos todos estão à beira de divisões graves, todos os partidos.
O PPS também?
O PPS é um partido pequeno que não tem como se dividir nada. Mas o PSDB tem. Porque é um partido com lideranças fortes... Serra... Alckmin... Aécio... e o risco de uma divisão grande existe. Mas os partidos estão perdendo a capacidade de agir na sociedade. Estão sendo substituídos pelos movimentos.