sexta-feira, 11 de maio de 2012

Contribuições para um debate sobre a TV Cultura


OS IMPASSES DA TV CULTURA



Por João Batista de Andrade



(maio/2012)







Em 1982, pela Comissão de Cultura da campanha de Franco Montoro ao Governo de São Paulo, de que eu era um dos dirigentes, junto com Fábio Magalhães e Ana Beluzo, organizamos dois debates, realizados no teatro Ruth Escobar, sobre a situação da TV Cultura naquele momento. A questão era a manipulação política e eleitoreira da TV pelo então governador JM Marin, a serviço da candidatura de Paulo Maluf ao Governo do Estado.



Os debates tiveram a participação efetiva de Mário Covas.



Eu, pessoalmente, já trazia essa ligação até mesmo emocional com a Cultura, como um dos participantes do noticiário Hora da Notícia, criado por Fernando Jordão e pelo Vlado (Vladimir Herzog). Uma ligação de imenso entusiasmo pelo que havíamos feito nesse programa em época tão difícil, terrível mesmo, sob a ditadura de Médici. E uma ligação amarga, dolorosa, pelo trágico desfecho daquela história, com o assassinato do Vlado.



Posso dizer com tranquilidade que ali, naqueles debates, na Campanha Montoro, começamos a discutir abertamente a TV Cultura como TV Pública, questionando qualquer tipo de manipulação sobre sua programação, posicionamentos culturais e políticos.



Para ser Pública, a TV precisava ser, antes de tudo, independente.



O sentido maior de sua programação, de seu posicionamento diante dos desafios brasileiros, esse sentido já havia sido exposto e experimentado no curto período de dois anos do programa “Hora da Notícia”, nascido exatamente das ideias de Fernando e Vlado, elaboradas ainda em Londres quando estagiavam na BBC. O programa deveria experimentar o puro exercício de um jornalismo independente e voltado para a superação dos problemas da sociedade brasileira, fossem eles cotidianos ou parte mesmo de nossa formação enquanto povo, nação. E era preciso informar bem.



Não era fortuito que eu me dedicasse, como cineasta que já era, a realizar pequenos documentários diários que se colocassem em oposição ética e estética à ditadura, sem a necessidade do discurso verbal facilmente reprimível. Eram filmes que se colocavam em oposição ao discurso e à propaganda ditatorial que nos vendiam a imagem e a informação manipuladora de que “o país era um país em paz, tranquilo, livre, em oposição às agitações sociais em quase todo o mundo”. Diziam isso enquanto perseguiam, reprimiam, torturavam e matavam os opositores.



Eticamente porque davam voz ao povo, superando a postura ditatorial, normalmente acatada pela mídia, de que diante de qualquer questão popular, a voz deveria ser a do especialista e da autoridade de plantão.



Em nossos filmes, as autoridades eram as pessoas envolvidas, favelados, operários, passageiros dos terríveis transportes urbanos, donas de casas, menores de rua, moradores da periferia, migrantes, boias-frias, etc. Vinham deles as mensagens de vida, da vida real de nosso país.



Alimentávamos a ideia de que, como jornalistas, -antes de nos tornarmos os heróis de qualquer revolução-, deveríamos contribuir para que o povo conquistasse aquilo que lhe fora roubado: a liberdade.



Liberdade de viver, pensar, de se organizar, de discutir seus próprios problemas.



Esteticamente, porque procurávamos limpar as imagens da impostura dos famosos filmezinhos da ditadura, extremamente bem filmadas, limpos, que procuravam transmitir essa falsa paz em que diziam vivermos. As nossas imagens tinham, então, o sabor oposto, o sabor da descoberta, o foco feito na própria cena, a imprecisão de enquadramento na busca da verdade.



A ditadura acabou, felizmente.



O povo brasileiro retomou sua liberdade de pensar, falar e agir.




A discussão travada em 1982, na campanha Montoro, pode ser considerada, então, um novo marco. Pois estava em jogo a questão central da TV Pública: sua independência, a recusa à manipulação vinda de onde viesse. E a esperança de que as ideias que haviam florescido ainda nos anos 70 pudessem se desenvolver e gerar uma TV Pública com o impacto cultural e educativo de que já mostrara ser capaz, com tantos programas de qualidade e influência criados em sua ainda curta existência.



E se foi vitoriosa, na esteira da vitória da oposição, abrindo caminho final para a democratização do país, a ideia de independência se tornou o maior desafio da existência da TVC como TV Pública.



É preciso aqui cuidar bem das expressões e facilidades acusatórias. A TVC deve sua permanência ao aporte do Estado, hoje por volta de R$80 milhões por ano, um montante evidentemente pequeno para uma boa TV, mas bastante grande diante dos desafios de governar. Quando Secretário de Estado da Cultura, sempre que pude, afirmei e reafirmei minha visão de que esse era o custo de um grande projeto cultural e que os recursos repassados pelo Estado guardavam a generosidade de qualquer investimento na cultura, a independência. É preciso dizer aqui, por justiça, que no governo não havia contestação a essa idéia. 



Para ser Pública, a TVC precisava ser também livre.



O julgamento de sua qualidade deveria vir sim da sociedade, dos telespectadores, dos críticos, da opinião pública.



Para continuar existindo e, portanto merecer o aporte governamental, a TVC precisaria cumprir bem sua função cultural, ser prestigiada, procurada, tomada como exemplo de uma boa TV, de uma boa política cultural.



Governos democráticos, ao contrário dos ditatoriais, mostram sempre o temor de agir nas questões culturais. Pois ali os sentidos de criação e liberdade são fundamentais, a área mais sensível a qualquer iniciativa, qualquer crítica, qualquer intervenção. E, ao mesmo tempo, área de grande influência sobre o conjunto da sociedade. No entanto, todos os governos se preocupam naturalmente com o destino de suas dotações em qualquer área.



Inclusive na TV Cultura.



E essa preocupação pode se tornar problemática em momentos de crise da entidade, momentos de dissensões, de críticas, de insatisfações da opinião pública.

Posso dizer, já que fui governo, que aos governantes interessa que os recursos sejam bem aplicados, bem administrados e que os resultados sejam bons, que não retornem ao Governo como problema.



Por isso acho sempre um erro dos insatisfeitos centrarem suas críticas nos Governos, erro que corre ainda o risco da partidarização das críticas, principalmente em anos eleitorais.



A questão, independente de sua maior ou menor razão, deve ser resolvida no âmbito da própria TVC. E da sociedade.



CULTURA E HEGEMONIA



Há, no entanto, uma questão fundamental que marca toda a disputa cultural nesse país. Trata-se da luta pela preponderância política e, eventualmente, eleitoral. Toda luta desse tipo também é uma batalha por hegemonia, uma disputa por ideias e projetos que procuram influenciar intelectual e eticamente os vários grupos sociais, interferindo no modo como se forma a opinião pública. Esse processo é visível em toda a vida social e é particularmente intenso nas áreas de cultura e da comunicação. É quase impossível escapar a esse conflito generalizado que permeia toda a vida social. E a TV Cultura é um dos focos sensíveis.

Afinal, por que tanto interesse em uma TV com um por cento de audiência?

É que ali temos dois fatores decisivos nessa disputa por hegemonia. Primeiro por que essa audiência atinge sobremaneira os formadores de opinião. Segundo, mais importante ainda, é a definição de quem está transmitindo sua visão, seu ideário, seu modo de ver a cultura e a sociedade, isto é, quem tem (ou é assim identificado) o poder dessa transmissão.

A TV Cultura carrega um imenso poder simbólico desde sua criação. Evidentemente a criação de um meio tão poderoso de comunicação foi um ato generoso, trazendo em si mesmo muitas contradições e possibilidades, como dobras em que uma maior liberdade de ação se faz e se fez possível, acima mesmo das disputas e divergências.

Como no restante do país, tudo isso está em xeque, no palco dessa disputa pelo predomínio ideológico e a busca de adesões,. Isso torna mais difícil a vida de todos os gestores de uma TV como a Cultura, tão dependente do Estado. É um processo que exige dos gestores um delicado trânsito que escape e não se deixe atingir por acusações simplistas de manipulação politica. A conjunção entre a abertura a idéias e críticas e, de outro lado, a firme defesa de suas idéias e projetos. Um processo controlado de renovação e compreensão desse intenso processo de mudanças por que passa nosso país.



RECURSOS FINANCEIROS



Essa é a delicadeza da questão: a Cultura, em todos os níveis, nas sociedades modernas, precisa do Estado. E essa dependência caminha sempre cambaleante nesse meio fio entre o risco do trânsito e a bonança das calçadas, entre a intemporalidade da necessidade cultural e a inconstância da política...



Por isso muitos de nós sonhamos às vezes com o fim dessa dependência.



Mas isso seria simplesmente fugir à verdadeira questão. Pois tal como já disse, os problemas, na democracia, não são dos governos, mas da própria Cultura.



Em nosso caso, da própria TV Cultura (sem querer aqui julgar ou culpar quem quer que seja: na verdade todos os gestores tem tentado resolver a difícil equação proposta na criação da TVC, - o que pode ser visto como uma dificuldade a mais na busca de um novo projeto cultural para a TVC).



Não há como descartar a participação do Estado. E essa participação deve seguir o que há de melhor na tradição das democracias: investir na cultura não dá direito ao Estado de intervir ou direcionar sua qualidade.



Sabemos todos que há uma equação difícil: os repasses do Estado nunca serão suficientes para o funcionamento de uma boa TV com a responsabilidade da TV Cultura. Então sempre haverá necessidade de novos aportes, sem os quais, perversamente, nunca conseguiremos realizar a boa TV que o próprio Estado espera de nós.



Que tipo de aportes? – essa é a questão.



Não gosto da solução já há algum tempo adotada, dos anúncios comerciais que, ancoradas nos primeiros anúncios “institucionais”, acabaram tornando as telas ligadas na TVC iguais a qualquer outra. Pois se numa TV Pública nossa busca é a de formar um público, - e a própria sociedade-,informados, mais cultos, independentes e capazes de discernimento, -na publicidade impomos ao público um desejo pronto, sem crítica e, na maioria das vezes, perfeitamente descartável.



Mas não tenho ilusões apressadas. Enquanto outras soluções não são engendradas, somos prisioneiros desse contrato problemático e contraditório com nossa própria missão.



É preciso fazer as contas, quem sabe retornar, com alguma perda, aos anúncios institucionais.



Existem outros caminhos.



Um deles é o da participação da União, das Secretarias e Ministério da Educação.



O Governo Federal não ajudou muito, ao se lançar de forma completamente imatura na área da TV Pública. A TV Brasil caminha com extrema dificuldade, apesar de ter muito mais recursos que a TVC. TV Brasil busca ainda sua própria definição entre ser governamental ou, de fato, pública. E ali, a relação com o patrocinador talvez seja ainda mais delicada. A meu ver todo esforço deveria ter sido empenhado na criação de uma Rede Pública, usando as várias TVs ligadas aos governos estaduais: agir em parceria com esses governos, alimentar a rede, propiciar produções locais e criar códigos de um bom funcionamento em termos éticos, estéticos e de gestão.



Mas isso não se deu, em grande parte em razão das disputas políticas: Estados e União governados por partidos antagônicos.



A solução, no caso, seria a recomposição, com recursos federais, de uma aliança entre a TV Brasil e a TV Cultura, mantendo a hegemonia da TVC no Estado de SP e uma boa participação nacional entre as emissoras ligadas ao sistema de TV Pública.



A solução ideal, sonhada por muitos de nós, seria a do financiamento público. Na Inglaterra os cidadãos pagam uma taxa e os recursos arrecadados sustentam a BBC.



Isso até foi tentado, por Mário Covas, mas a forma impositiva de cobrança, uma taxa extra nas contas de luz, acabou dando lenha para os que gostariam de queimar a TV Cultura, principalmente as “concorrentes”comerciais.



Penso que ainda se pode voltar à ideia, talvez de forma não obrigatória, mas é evidente na sociedade que quem deve pagar tudo é o Estado. E essa cobrança será vista como mais um imposto no país dos impostos.



Certas religiões, usando o poder de suas redes de TV arrecadam milhões entre seus fieis que, em sua grande maioria, vem das populações de baixa renda.



A TV Cultura conseguiria isso? - eis a pergunta.



Sim, se estiver num momento luminoso.



Não, se estiver em crise.



Para se credenciar a essa participação pública, é preciso que a TV Cultura conquiste definitivamente a opinião pública como uma fonte importante de saber, de lazer e de informações desinteressadas, apartidárias. E sem anúncios...

Um comentário:

Ariane Porto disse...

João, muito lúcido e ponderado seu texto. O debate precisa ser aberto a todos nós, produtores e consumidores de cultura. Esse é um bom momento, já que tantas alterações estão em andamento, até mesmo nas Tvs por assinatura. Por que não numa TV Pública?Parabéns!

Ariane Porto