Literatura e cinema em 'Poeira e escuridão'
13.10.2015
Literatura e
cinema em 'Poeira e escuridão'
Poeira
e escuridão - este é o
título do livro de contos de João Batista de Andrade (1939), jornalista e
professor, que a Associação Cultural LetraSelvagem, de Taubaté-SP, acaba
de colocar no mercado. São onze contos escritos em linguagem cinematográfica, com
narrativas que espocam como flashes e se superpõem até
completar um quadro inteiro.
·
Tamanho da Fonte
I
Poeira
e escuridão - este é o título do livro de contos de João Batista de
Andrade (1939), jornalista e professor, que a Associação Cultural LetraSelvagem,
de Taubaté-SP, acaba de colocar no mercado. São onze contos escritos em
linguagem cinematográfica, com narrativas que espocam como flashes e
se superpõem até completar um quadro inteiro. E não poderia ser diferente, não
fosse o seu autor um dos cineastas mais importantes do Brasil, ainda em
atividade.
Adelto
Gonçalves (*)
Como diz, no texto
de apresentação deste livro, Luís Avelima, poeta, crítico, jornalista e
tradutor deGente pobre (LetraSelvagem, 2011), de Fiodor
Dostoievski (1821-1881), entre outras obras, antigo editor do jornal Voz
da Unidade, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e ex-locutor da Rádio
Central de Moscou, estes contos constituem "onze retratos que se costuram
entre o telúrico e a dureza urbana, a revelar o dia que escorre em poesia de
amor e dor, de lembrança, cenas do agora, que logo se tornam cacos na massa
infame que nos cerca e que logo adiante se recosturam e ganham forma".
Para ele, Andrade firma-se a cada livro e mostra neste última obra que "a
literatura é a loucura que pode salvar o mundo".
Já o crítico
Ademir Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
(USP), poeta e editor da revista cultural Babel, no prefácio que
escreveu para este livro, prefere analisar, detidamente, os onze contos, sem
deixar que apontar a sua relação com o cinema. E mostra para o leitor
menos atento alguns detalhes como aquele que percebeu no conto "Ética
pelas metades": um carrinho de bebê põe à vista do leitor (espectador) uma
famosa cena do clássico filme Encouraçado
Potemkin (1925), do russo Serguei Eisenstein (1898-1948),
obra que é considerada, ao lado de Cidadão Kane, do norte-americano
Orson Welles (1915-1985), uma das mais importantes na história do cinema.
II
Um dos contos mais
bem urdidos desta coletânea - ainda que todos sejam relatos bem construídos,
mesmo aqueles de página e meia - é "Morangos silvestres", que encerra
o livro. A narrativa é centrada em dois personagens, um mais velho, comunista
sobrevivente de um massacre feito por esbirros da ditadura contra o seu grupo,
e um jovem aspirante a revolucionário, cooptado pelo mais experiente, mas que,
fora de lugar, parece ter chegado tarde ao mundo.
O diálogo ocorre
exatamente num momento tenso em que ambos caminham pelas ruas com o objetivo de
cometer um atentado contra o presidente de uma republiqueta latino-americana,
provavelmente um antigo pelego que, criado e amadurecido no ambiente dos
sindicatos de trabalhadores, soubera como usar a linguagem populista de
esquerda para encantar a população e perpetuar-se no poder eleição após
eleição, traindo os ideais dos grupos esquerdistas que o ajudaram no início da
caminhada. Eis um trecho desse diálogo:
- Há
um homem próximo de se eternizar no poder, ele saiu de nós, de nossa história,
era a promessa de nossa vida, de nossa juventude, a esperança de que tudo
voltasse a ser como antes, que a história não morresse, que o ar fosse de novo
respirável. E ele nos traiu.
- Ele
é apenas um homem - murmurou Ramírez.
-
Quando chegam lá, eles deixam de ser "apenas um homem".
É também numa
republiqueta de pastelão em que a cena política funciona sempre como farsa que
se passa o conto "O gato Guevara", que faz lembrar O outono
do patriarca (1975), de Gabriel García Márquez (1927-2014), Tirano
Banderas (1926), de Ramón María del Valle-Inclán (1886-1936), e outros
romances sobre a decadência de ditadores latino-americanos. Um general
paspalhão, sem nunca ter chegado ao ápice da carreira que seria a presidência
da uma república bananeira, convive a contragosto com a abertura política que
invade até mesmo a sua casa, com a presença de um cunhado "cabeludo, de
brincos na orelha, irresponsável e transviado", e até mesmo um gato que
carrega nome de guerrilheiro, tudo em favor do bom convívio com a fogosa esposa
Leonora.
No conto "No
tempo do cinema", Andrade deixa
mais uma vez explícito o seu fascínio pela sétima arte e presta homenagem a
Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948),
os irmãos Lumières, inventores do cinematógrafo, considerados os pais do
cinema, filhos do industrial Antoine Lumière (1840-1911), dono da Usine
Lumière, em Lyon, na França. O conto é composto por narrativas que
igualmente se superpõem, enfocando a infância de meninas pobres, que se
desdobram umas nas outras, como matrioscas russas, até dar numa jovem operária
francesa que participa do primeiro filme dos Lumières.
Essa jovem, mais tarde, vem para o Brasil com o marido que iria negociar
"filmadoras, projetores e até mesmo algumas pequenas latas circulares de
rico conteúdo, filmes realizados pelos próprios Lumières que tanto sucesso
faziam por toda parte". Sem, contudo, esquecer o olhar do patrão Louis Lumière,
por quem sonhava ser seduzida, paixão tão imorredoura que a levaria a dar o seu
nome ao primeiro filho, ao primeiro neto e ao primeiro bisneto também.
III
João Batista
de Andrade, nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, militante do PCB à época mais
dura da repressão promovida pela ditadura civil-militar (1964-1985), tornou-se
nome conhecido nacionalmente como cineasta, depois da realização de filmes
como Doramundo, vencedor do Festival de Gramado-RS, em 1978,
inspirado em romance do jornalista Geraldo Ferraz (1905-1979), publicado em
1956; O homem que virou suco, Medalha de Ouro de Melhor Filme no
Festival de Moscou, em 1981; O tronco, Prêmio de Melhor Filme pela
Comissão das Comemorações dos 500 Anos do Brasil no Festival de Brasília, em
1999; e Vlado, 30 anos depois, de 2005, que reconstitui a
trajetória do jornalista Valdimir Herzog (1937-1975), assassinado nos porões de
uma unidade do Exército.
Com mais de 40 obras em sua filmografia, Andrade nunca deixou de manter
estreita ligação com a literatura, tendo transportado para as telas, além
de Doramundo e O tronco, de Bernardo Élis
(1915-1997), outras obras literárias como Veias e vinhos, de Miguel
Jorge (1933) e Vila dos confins, seu 17º longa-metragem, de 2011,
baseado em romance de Mário Palmério (1916-1996).
Em 1983, dirigiu A próxima vítima, um de seus melhores
filmes, que causou forte impressão ao desmistificar violentamente a ilusão da
abertura democrática, ainda à época em que o regime civil-militar já permitira
o retorno dos exilados e baixara lei de anistia para os perseguidos e seus
perseguidores. Em 1987, ganhou quase todos os prêmios do Festival de Brasília,
com o polêmico O país dos tenentes, com temática também ligada ao
fim do regime ditatorial.
Em 2010, foi o grande homenageado do Festival Latino-Americano de
Cinema, em São Paulo. Foi secretário de Cultura do Estado de São Paulo de 2005
a 2007, quando criou a Lei da Cultura (Proac), com editais e incentivos para a
produção cultural. Em 2012, foi nomeado presidente da Fundação Memorial da
América Latina, cargo que ainda ocupa.
A par de sua carreira como cineasta, publicou mais sete livros de
ficção, incluindo quatro romances:A terra do Deus dará (1980), romance
infanto-juvenil; Perdido no meio da rua, escrito em 1964 e
publicado 20 anos depois (Editora Global, 2ª ed., 1989); Um olé em
Deus, publicado em1989 e republicado pela Editora Scipione em
1997; O portal dos sonhos (Ufscar Editora, 2001); Sozitos,
a lenda da terra ronca(Editora Lazuli, 2013), romance
infanto-juvenil; Confinados: memórias de um tempo sem saída (Editora
Prumo, 2013) e A terra será azul (Editora Lazuli, 2014).
Foi professor na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Em 1999,
defendeu na ECA-USP a tese de doutorado O povo fala - um cineasta na
área de jornalismo da TV brasileira, aprovada pela banca com distinção e
louvor e publicada em 2002 pela Editora Senac, de São Paulo. A jornalista Maria
do Rosário Caetano dedicou-lhe o estudo João Batista de Andrade -
alguma solidão e muitas histórias, publicado pela Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, em 2010.
______________________________
Poeira e escuridão, contos, de João Batista de Andrade, com prefácio de Ademir Demarchi e
apresentação de Luís Avelima. Taubaté-SP: LetraSelvagem, 160, págs., R$
30,00, 2015. Site:www.letraselvagem.com.br
E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
_______________________________
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio
de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage - o perfil perdido (Lisboa, Caminho,
2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de
Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e
Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail:marilizadelto@uol.com.br
- See more at:
http://port.pravda.ru/sociedade/cultura/13-10-2015/39625-poeira_escuridao-0/#sthash.YnUMxjRs.dpuf